Neste sábado, durante a classificação para o Grande Prêmio da Arábia Saudita de F1, Mick Schumacher perdeu o controle da sua Haas ao passar sobre as zebras em uma das curvas do circuito de Jedá e se chocou violentamente contra o muro de proteção. O piloto foi retirado do carro e levado de ambulância ao centro médico do circuito, e seguiram-se alguns minutos de apreensão até a confirmação de que o alemão estava bem e sem nenhuma lesão mais séria. O carro se partiu em dois e deixou um enorme rastro de destroços sobre a pista saudita. Uma vez mais estava demonstrada a segurança de um F1 moderno. Mas o que faz da F1, e muitas outras categorias de alto nível do automobilismo, tão seguras? O que há no desenho e construção desses carros que faz com que se destruam em uma colisão para manter o piloto intacto?
Carros de corrida são construídos visando um único objetivo: ser o mais rápido possível. Ok, nos últimos 25-30 anos a segurança tem ganhado mais e mais importância, mas o objetivo principal ainda é correr e chegar à frente dos demais. E desde muito cedo, os construtores de carros de corrida se deram conta de que os materiais usados na fabricação dos bólidos são de fundamental importância para atingir esse objetivo.
Os primeiros registros de experimentos com o uso de materiais na fabricação de carros de competição datam do princípio do século XX. Nos anos de 1920-1930, a madeira era amplamente utilizada na fabricação de chassi. Talvez por conveniência e baixo custo, nem tanto por performance. Mas a partir da Primeira Guerra Mundial, do desenvolvimento da aviação e da maior disponibilidade comercial do alumínio e suas ligas, ficou claro que os materiais tinham um papel central no desenvolvimento de carros de corrida, permitindo a diminuição do peso e aumento da relação potência/peso.
Até meados dos anos 1950, o principal método de fabricação dos chassi de carros de competição era com uma estrutura tubular de alumínio, recoberta com chapas de alumínio trabalhadas à mão. Compósitos de fibras de vidro orientadas ao azar em matrizes epóxi (GRP – glass reinforced plastic), desenvolvidos durante a 2a Guerra Mundial, tornaram-se bastante populares e eram amplamente utilizados para produzir peças e componentes com curvaturas difíceis de atingir com o alumínio trabalhado manualmente. Compósitos de fibra de vidro continuaram a ser utilizados na Formula 1 até o início dos anos 1980, mas sempre em peças e componentes da carenagem (bodywork), nunca como componente estrutural no chassi.
O primeiro material verdadeiramente compósito aplicado ao chassi de um carro de competição surgiu nos anos 1960, das mãos da Charles e John Cooper na Cooper Car Company. Os Cooper revolucionaram a F1 (e ganharam 2 campeonatos mundiais de construtores e de pilotos em 1959 e 1960), colocando pela primeira vez o motor na parte traseira do carro e fabricando um chassi composto por chapas finas de alumínio como películas externas, um núcleo de alumínio em formato de favo de mel (honeycomb), e GRP como películas internas. Comparado ao chassi tubular de alumínio, o compósito sanduíche com núcleo de alumínio honeycomb apresentava maior segurança em caso de colisões e redução de peso da estrutura, levando a consideráveis ganhos de performance, e consequentemente se tornou o método padrão de construção de carros de F1 até o início dos anos 1980.
A próxima revolução no uso de materiais na F1 aconteceria no início dos anos 80, com algo que iria muito além do esporte a motor, causando impacto em várias outras industrias. Em 12 de abril de 1981, a McLaren alinhou no grid do GP da Argentina o McLaren MP4/1, o primeiro carro com um chassi construído integralmente em fibra de carbono. Era construído como um sanduíche com o já tradicional núcleo honeycomb de alumínio e camadas de fibras de carbono unidirecional como películas interna e externa. O chassi era formado por apenas 5 partes, diferentemente dos chassi de alumínio que costumavam conter mais de 50 partes. O desenvolvimento começou em 1979, idéia do diretor técnico da McLaren, John Barnard, auxiliado pelo engenheiro aeronáutico Arthur Webb. A motivação para construir um chassi em fibra de carbono era pura e simplesmente performance. Um chassi em fibra de carbono poderia ser mais estreito que os tradicionais de alumínio, permitindo que as laterais do carro formassem túneis de Venturi maiores, maximizando o efeito solo, aumentando o downforce sobre o carro e consequentemente sua velocidade em curvas.
Havia uma grande preocupação na McLaren ao substituir os painéis de alumínio por fibra de carbono: rigidez. O chassi de um carro de competição, especialmente na F1, precisa ser rígido. Em curvas você não quer que o chassi sofra torção sob pena de perder performance. Durante uma corrida, a suspensão precisa se entender com todas as forças, oscilações e movimentos envolvidos, mas o chassi precisa se manter firme, rígido. Quando os testes de torção foram realizados sobre os primeiros protótipos produzidos, os resultados mostraram todo o potencial da fibra de carbono. O chassi construído em fibra era 2,5 vezes mais rígido que o de alumínio quando construídos com a mesma espessura. Isso permitiu diminuir a quantidade de camadas de fibras na construção, obtendo uma rigidez igual a do chassi em alumínio, mas com uma redução de 30% no peso. Algo de fundamental importância para um carro de competição. Na sua primeira corrida, o MP4/1 ficou em 3º lugar. Na segunda, obteve um 2º posto. E na terceira corrida, correndo em casa no GP da Inglaterra, veio a primeira vitória.
Apesar dos bons resultados em pista, o chassi em fibra de carbono ainda era visto com certo ceticismo na F1, com muitas dúvidas sendo levantadas sobre a segurança e em como ele se comportaria no caso de colisões mais sérias. Todas essas dúvidas desapareceram no Grande Prêmio da Itália de 1981. John Watson perdeu o controle da sua McLaren na segunda curva Di Lesmo e bateu com força contra as barreiras de proteção. O carro se separou em duas partes, a caixa de transmissão com meio eixo traseiro parou de um lado da pista, enquanto o restante do carro ficou envolto em chamas e fumaça. Quando a poeira abaixou, Watson saiu caminhando do cockpit, sem nenhum ferimento.
A segurança do chassi em fibra de carbono estava comprovada. O chassi em fibra de carbono se tornaria o novo padrão na construção de carros na F1, sendo rapidamente utilizado por todas as outras equipes. A McLaren utiliza chassi em fibra de carbono em todos os carros que produz desde 1981, de rua e de competição. Em 1983 a mesma McLaren colocaria na pista o primeiro chassi construído como um monocoque em fibra de carbono. Uma única peça de fibra de carbono que envolveria e protegeria o piloto, a chamada célula de sobrevivência. Especificamente na F1, compósitos de fibra de carbono passaram a ser aplicados em muitos outros componentes além do chassi. Os braços de suspensão de um F1 são construídos em fibra de carbono desde o início dos anos 90. Em 2004 a BAR desenvolveu uma caixa de transmissão em fibra de carbono. Aproximadamente 80% de um F1 moderno é construído em compósitos de fibra de carbono, e que correspondem apenas a 20% do peso total do carro. Quando olhamos um carro de F1, praticamente tudo o que podemos ver está construído em compósitos de fibra de carbono.
Mas o que faz dos compósitos de fibra de carbono tão importantes na proteção ao piloto em caso de acidentes? Certamente você já ouviu a frase “o carro de F1 é feito pra se desmanchar numa colisão”, ou “o carro quebra pra absorver energia e proteger o piloto”. Sim, é basicamente isso, e o que garante esse comportamento são as propriedades mecânicas dos compósitos de fibras de carbono. As fibras de carbono mais comuns são obtidas a partir de poliacrilonitrila (PAN), um polímero, um plástico sintético de fórmula química (C3H3N)n. Esse “n” indica que essa estrutura se repete, ou seja, uma molécula com 3 átomos de carbono, 3 de hidrogênio e 1 de nitrogênio, que se repete indefinidamente. As fibras de carbono são obtidas quando fazemos as fibras de PAN passar por um tratamento térmico em um forno com atmosfera controlada (livre de oxigênio), a temperaturas que podem variar de 1200 a 1500 ºC. A essas temperaturas, os átomos de hidrogênio e de nitrogênio se desprendem das moléculas das fibras, ao mesmo tempo em que os átomos de carbono se rearranjam formando uma estrutura cristalina parecida à do grafite. O que se obtém então é um fino fio com diâmetro de alguns micrômetros (a milionésima parte de um metro, ou 1 metro dividido por 1 milhão!), formado exclusivamente por átomos de carbono, o que conhecemos como fibra de carbono. Esses fios são organizados em feixes, com milhares de fios individuais, e com esses feixes são formados “tecidos” de fibras.
Para preparar os compósitos, camadas de fibras de carbono são empilhadas (em função da espessura desejada) e em seguida impregnadas com uma matriz polimérica (tipicamente epóxi). Os compósitos podem ser moldados, praticamente em qualquer geometria, antes da cura da resina. A quantidade de camadas, a orientação das fibras, bem como a qualidade das fibras utilizadas, determinam as propriedades mecânicas finais da peça. A principal característica de um compósito de fibra de carbono é sua altíssima rigidez. Isso significa que compósitos de fibra de carbono não sofrem deformação plástica durante impacto. Pegue uma lata de refrigerante vazia e dê uma pancada na parte superior. A lata se deforma enquanto absorve a energia do impacto. Agora imagine o piloto dentro de um cockpit de alumínio.
Com um compósito de fibra de carbono o comportamento é bem diferente. A peça não sofre deformação quando sujeita a um impacto. Quando a força do impacto excede o limite de resistência mecânica da peça, essa sofre uma falha catastrófica e se despedaça, se fragmenta em milhares de pequenos estilhaços. Isso faz com que a energia do impacto seja absorvida e dissipada, majoritariamente em energia cinética dos fragmentos. Essa dissipação de energia é fundamental pra que quando o impacto chegue no monocoque que abriga o piloto, a força não seja suficiente para causar danos à estrutura mantendo o piloto em segurança. O vídeo abaixo ilustra bem esse comportamento.
Compósitos de fibras de carbono são apenas um exemplo dos diferentes materiais utilizados na construção de um carro de F1. Há ainda o kevlar nos tanques de combustível e o nomex, fibra resistente ao fogo aplicada na vestimenta dos pilotos e que salvou a vida de Romain Grosjean no Bahrein em 2020. Sem falar dos compósitos cerâmicos nos freios, do lítio nas baterias e do titânio no halo. A F1 é o pináculo da engenharia, e ao longo dos anos a ciência dos materiais tem se mostrado fundamental no seu desenvolvimento. Processo, composição e estrutura dos materiais levados ao limite em prol de desempenho e performance.
Referências
Um texto técnico sobre a aplicação de materiais compósitos na F1: http://www.formula1-dictionary.net/Big/Composite%20Materials%20Technology%20in%20Formula%201%20Motor%20Racing.pdf
Sobre a história do MP4/1, primeiro carro com chassi de fibra de carbono na F1: https://www.motorsport.com/f1/news/the-car-that-changed-formula-1-history/4779400/